4/04/2007

IMPRENSA

Entrevista ao geógrafo Fernando Rebelo: Ria pode desaparecer para dar lugar a planície litoral
Diário de Aveiro, 02/04/2007, Rui Cunha
Natural de Espinho, o geógrafo Fernando Rebelo foi, no mês passado, convidado pelo PS/Aveiro para uma palestra sobre a ria de Aveiro. Em pequena entrevista ao Diário de Aveiro, fala sobre os problemas de assoreamento da laguna, advertindo que se pode transformar numa «planície litoral». Quando? «É impossível prever, até porque o Homem pode atrasar o processo», refere este antigo reitor da Universidade de Coimbra, instituição onde lecciona no Centro de Estudos Geográficos
Na palestra que deu em Aveiro, lembrou que, em 1922, o geógrafo Amorim Girão advertiu que a ria caminhava inexoravelmente para o fim. Trata-se de uma tese válida actualmente?
Amorim Girão disse que a laguna de Aveiro caminhava inexoravelmente para o fim porque estava sujeita a três tipos de acções: deposição de sedimentos (calhaus, areias, argilas, material orgânico) do Vouga e de outros rios e ribeiras que nela desaguam, deposição de areias transportadas a partir das praias pelos ventos fortes que ao perderem um pouco da sua velocidade as deixam cair sobre a sua superfície e deposição de material orgânico em ligação com a vegetação aquática que aí se desenvolve. Actualmente, ninguém terá dúvidas quanto a esta dedução. Quanto ao material proveniente das cheias do Vouga, fala-se de um delta interior - muitos autores têm falado do «Haff-delta» de Aveiro, ou seja, a laguna («Haff», em alemão) onde se constrói um delta). A «chuva de areia»tem sido detectada em dias de ventos fortes vindos de Noroeste e compreende-se cada vez melhor, atendendo à enorme quantidade de areias existentes na área de São Jacinto e que tem vindo a aumentar em função do crescimento do esporão Norte da Barra. Quanto à deposição de material orgânico criado localmente, também todos sabem da acumulação do moliço que deixou de ser aproveitado.
Corre-se o risco de a ria ser completamente assoreada?
Se compararmos o que está a passar-se na laguna de Aveiro com o que se passou em muitas lagunas situadas em diversas áreas do globo, Amorim Girão estava certo. A evolução de uma laguna leva ao seu desaparecimento sendo substituída por uma planície litoral. Quando? Impossível prever até porque o Homem pode atrasar o processo. Bastar-lhe-á actuar contra os processos naturais acima referidos. Se o Homem se distrair e nada fizer a evolução natural será mais rápida.
Na sua conferência em Aveiro, penso ter dito que há areia a mais na laguna e a menos no mar. Porquê?
O mar também tem levado, embora esporadicamente, muita areia para a laguna. Recordo a tempestade de Fevereiro de 1978 que esteve na origem da subida das águas do mar que cortaram o cordão litoral, só por si ou com a ajuda do Homem (para evitar inundações em casas), em três locais entre Costa Nova e Vagueira. Muita areia do cordão litoral entrou na «ria» e por lá ficou. O que poderá levar a isso? Quando há um temporal, há ventos fortes e baixas pressões. Os ventos estão na origem das ondas, que então serão maiores. As baixas pressões podem fazer subir momentaneamente o nível das águas. Se as ondas tiverem cinco metros e o abaixamento da pressão fizer o mar subir outros cinco (uma forte «storm surge»), temos dez metros... Quando da tempestade de Fevereiro de 1978, entre Espinho e a Figueira da Foz ninguém me falou em ondas de menos de dez metros e entrevistei muita gente. Ora isto aconteceu e poderá acontecer outra vez porque o cordão litoral está muito estreito para Sul da Barra (em contraponto com a largura que tem a Norte). Há pouca areia no mar. O Rio Douro que há anos transportava imensa areia para o mar, libertando-a para a chamada deriva litoral a ir depositando ao longo da costa para Sul, hoje está completamente controlado por numerosas barragens - só no troço nacional são cinco, antes no troço fronteiriço, outras cinco... E, da pouca areia em circulação de Norte para Sul, muita fica em São Jacinto... Entretanto, por tudo o que ficou para trás, compreende-se que há areia a mais na laguna. No Tejo chamar-se-iam mouchões, aqui poderemos chamar ilhotes de areia - são visíveis vários entre Aveiro e Costa Nova.
No debate promovido pelo PS em Aveiro, classificou a ria como uma jóia frágil do património natural. Quão frágil é a ria?
Jóia porque é, provavelmente, a mais bonita forma litoral do nosso país. Frágil porque está sujeita a processos que levam ao seu desaparecimento. Mostrei fotografias tiradas nas Gafanhas e em Vagos que não me deixam mentir - o assoreamento é rápido em termos geográficos, como qualquer pessoa de idade que tenha emigrado e agora regresse poderá confirmar. Quem aí vive diariamente nem se apercebe...
No seu livro « Riscos Naturais e Acção Antrópica», diz que é inapropriado chamar ria de Aveiro à ria de Aveiro. Porquê?
Foi Amorim Girão quem, na sua tese de doutoramento, «Bacia do Vouga» (1922), afirmou que a chamada Ria de Aveiro era uma Laguna. E explicou porquê - Friederich von Richtofen, no século XIX, tinha definido Ria como uma reentrância do mar no continente, ocupando o espaço de um vale fluvial. De aí para cá muitos geógrafos e geólogos falam na «impropriamente chamada Ria de Aveiro». Na verdade, a Ria de Aveiro existiu. Durante a transgressão flandriana, que terá atingido o seu máximo há 7.000 anos, o mar penetrou todos os vales então existentes no nosso litoral, entre os quais o vale do Vouga até (segundo o mesmo Amorim Girão) à foz do Rio Marnel. E foi assim por muito tempo. Mas com o arrefecimento progressivo do clima o mar foi recuando. Por vezes um aquecimento resultava e novo avanço do mar, como poderá ter acontecido nos séculos XV e XVI. Mas o arrefecimento do século XVIII levou a um importante recuo do mar, com deposição de muita areia e, de norte para sul, o cordão litoral foi crescendo até que se fechou a Laguna. Por acção do Homem foi aberta a actual Barra nos fins do século XVIII, princípios do século XIX. O que temos hoje é, portanto, uma Laguna. A recordação da Ria que ainda foi contemporânea dos nossos antepassados justifica que ainda assim se chame em termos populares. Mas não em termos científicos. As rias mais próximas ficam na Galiza.

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